quinta-feira, 3 de novembro de 2016

O mais irritante nos filhos...


(Carta de uma mãe ao mundo)

O mais irritante nos filhos nem é chorarem quando nascem; é fazerem-nos chorar quando nascem.

Se não fosses tão bonito, eu, agora que peguei em ti ao colo pela primeira vez, não choraria assim. Não pensaria em tudo o que, mesmo que tu tenhas acabado de nascer, já vivemos juntos. Não pensaria no quanto te desejava, desde sempre. No quanto te desejámos desde sempre. És o filho mais querido do mundo, ficas desde já a saber. E o mais bonito também, disso não restam quaisquer dúvidas. Todos os filhos são os mais bonitos do mundo, e se termos essa certeza absoluta em cada um de nós não servisse para salvar o mundo então que acabassem com este mundo de uma vez. 

O mais irritante nos filhos nem é serem giros; é eles saberem que são giros.

Se não fosses tão bonito, eu não estaria agora a abraçar-te quando tu bem sabes o que eu deveria estar a fazer. Olhas para mim com esses olhos, pedes perdão por mais uma asneira que fizeste, desta vez partiste a cama ao saltares lá em cima (“vamos fazer de conta que é um trampolim”) com o teu amigo Edgar, o teu amigo de sempre. E eu perdoo-te, como é impossível não perdoar quando és todo assim, impossível de não ser perdoado. Mas vê lá se ganhas juízo e passas a ser bonito e com juízo, fazes hoje seis anos e está na hora de começares a ser um homenzinho. Não cresças no que faz sonhar, por favor, e se crescermos em tudo menos no que faz sonhar não servisse para salvar o mundo então que acabassem com este mundo de uma vez. 

O mais irritante nos filhos nem é serem donos da nossa vida; é deixarem de ser donos da nossa vida.

Se não fosses tão bonito não tinhas encontrado uma mulher tão bonita, e tu só merecias mesmo esta. A tua mulher. Parece que tem o segredo da tua felicidade no interior do olhar. E eu só de saber que a amas assim já a amo tanto. Já não precisas de mim e tenho de o aceitar, tens a tua vida e resta pouco para te ocupares da minha. Eu cá andarei, sabendo que me queres bem e eu te quero bem. Às vezes ligo-te e digo-te que te amo, tu às vezes ligas-me e dizes-me que me amas. Às vezes apareces e quero que o abraço que dás à chegada dure para sempre, mesmo que saiba que vai mesmo durar para sempre, quando fecho os olhos ainda o sinto, o abraço é aquele que se sente quando se fecha os olhos, nada mais. És o melhor filho do mundo, o mais atencioso. Dás-me tudo o que podes e amas-me como podes. Continua assim, é uma ordem, e se amarmo-nos todos como podemos não servisse para salvar o mundo então que acabassem com este mundo de uma vez.  

O mais irritante nos filhos nem é serem lindos de morrer; é terem de nos ver morrer.

Se não fosses tão bonito saber que estou a ir não iria doer tanto. E olhares-me assim, com esses olhos profundos nos meus que aposto que já estão vazios. O fim do caminho nota-se pelo olhar, eu sei. Já fui tantas coisas mas o que nunca deixei de ser foi tua mãe. E se me perguntassem o que tinha sido na vida eu teria respondido sem hesitar: mãe do meu filho. Vou descansada, feliz até. Ficas em boas mãos, em boa vida. A tua mulher continua a mulher mais linda de todas, tu continuas o menino mais lindo de todos, as rugas ficam-te bem, meu sacana, vê lá a tua sorte. Agora deixa-me ir, eu estou bem, descansa, deixa-me ir em paz e vê se tratas bem da vida que te resta, e se tratarmos todos bem da vida que nos resta não servisse para salvar o mundo então que acabassem com este mundo de uma vez. 

in "Prometo Perder", de Pedro Chagas de Freitas 

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